São já demais os exemplos que fazem com que os nossos tribunais inspirem aos cidadãos comuns e decentes não um mínimo de confiança, mas genuíno medo. Incapazes (ou desinteressados) de punir a corrupção que nos atira para os últimos lugares da EU em termos de desenvolvimento (é isso, sim, em primeiríssimo lugar), deleitam-se a triturar pessoas inocentes, com base no mais puro preconceito pessoal dos senhores juízes, inimputáveis na sua meritíssima irresponsabilidade.
Porém, entre as muitas enormidades a que temos assistido nos últimos anos, não me recordo de um acórdão que chegasse ao insulto pessoal e soez como o que o Tribunal da Relação de Coimbra acaba de lavrar no caso do sargento Luís Gomes. Diz que “o arguido recebeu a criança…como se tratasse da compra de uma coisa, com recibo passado”, que “fez da criança coisa sua…como se de um animal de estimação se tratasse”!
Sinto-me pessoal e cruelmente insultada! A minha vida tem alguns paralelos com a da criança em causa. Há 37 anos, fui entregue, com meses de idade, aos pais que me criaram (os pais verdadeiros e únicos) por uma mãe biológica que nunca mais quis saber de mim e que, provavelmente, nem sabia quem era o meu “pai”. Pago-lhe, naturalmente, na mesma moeda. Fui sempre tratada com muito amor, daquele que não se pode ter a “uma coisa”. Quem ousar chamar-me “animal de estimação” não merece o bom tratamento que sempre demos aos cães e gatos que tivemos. Quando “me encontrei comigo mesma”, não tive, como alarvizam os doutos juízes, “consciência de que nada do que [me] rodeava era verdadeiro, nem sequer o próprio nome”. Pelo contrário, os meus pais deram-me a identidade e o amor-próprio que mais ninguém me deu!
Ultimamente, temos ouvido muitos disparates da boca de pedopsiquiatras e quejandos. Lembro-me de um que postulava “as crianças não mentem” (qual de nós não disse “não fui eu”, depois de uma asneira?) Esses, supostamente, escudam-se num diploma. Mas qual é a cadeira das faculdades de Direito ou do CEJ que habilitam os juízes a elaborarem juízos desta natureza?
O raciocínio do acórdão é idiota, a adjectivação é criminosa, porque insulta muitos cidadãos que não merecem apanhar com tal pesporrência . No meu modesto entendimento, os autores cometeram um crime público, de insulto e de incitamento à descriminação. Quem os julgará? Espero sentada.
Maria Amélia Soares
(não sei nem quero saber se antes tive outro nome)
Senhora da Hora, Matosinhos
Saiu, na secção Cartas ao Director, no jornal Público de hoje e não é preciso dizer mais. Penso, e sinto, exactamente o mesmo.