Ao cair da tarde, depois de sair do trabalho e ir beber um traçado na taberna do Ti Miguel, seguia para casa, a caminho da sopa, pela calçada das Trinas. Há já algum tempo que a vejo sentada cá fora, uma velhinha de idade indefinida (setentas? oitentas?) com um vestido garrido, uma rosa no cabelo e um olhar perdido no horizonte. Durante algum tempo não liguei muito mas depois despertou-me curiosidade. No entanto e porque gosto de respeitar a privacidade dos outros, e também por um pouco de pudor, nunca me meti a conversar. Uns meses passaram e, como todas as rotinas, a sua regular presença deixou de me chamar a atenção. Acabei, por um mero acaso, de saber a história completa.
Aos Sábados à noite juntávamos uns amigos e íamos petiscar e beber uns copos no Papagaio Dourado, snack-bar e restaurante propriedade do amigo Júlio (belas pataniscas e dobradinhas lá petisquei). Numa noites dessas uma rapaziada que não aguentava bem os copos (antigamente dizia-se que tinham mau vinho) decidiu, por causa do futebol, armar barraca. Puxa de chapada daqui, de murro dacolá e de insulto soez. Normalmente deixo que as pessoas resolvam os seus assuntos por si próprias, são adultos e vacinados portanto que se desunhem, mas nunca gostei de ver uma luta desequilibrada, portanto decidi por algum peso do lado mais fraco. Fiquei a saber, pelas caras assustadas, que um tipo da minha altura com uma mesa nas mãos levantada acima da cabeça mete respeito a alguns valentes e fá-los recordar assuntos urgentes que têm que ser tratados noutro local.
Na hora da volta para casa vinha a conversar com o fulano a quem tinha salvado as costas e descobri que morava na calçada das Trinas. Palavra puxa palavra e acabei por falar da tal velhinha e da minha curiosidade. Primeiro entupiu mas depois lá disse que era sua avó e debaixo de um desses candeeiros públicos já antigos e de luz baça contou-me o caso todo. A avó, de nome Clarinda da Luz (nome que achei delicioso), quando muito nova, costumava depois de ajudar a mãe nas lides da casa, ao fim da tarde, de sentar-se num banquinho à porta de casa a gozar os últimos raios de sol, com uma rosa, que tinha tirado do grande jarrão à entrada do corredor, no cabelo. Um dia um rapaz que passava deitou-lhe um piropo a que ela respondeu e palavra puxa palavra pouco tempo era passado e já estavam com ternuras. Não demorou um ano e eram casados. Mudaram-se para a calçada das Trinas onde alugaram uma casa, a parte de cima era a habitação e o rés-do-chão a oficina de marceneiro dele. Ali viveram, felizes, e ali tiveram farta prole que naqueles tempos era mesmo assim, os putos vinham às carradas. No ano anterior ele tinha morrido e ela nunca mais tinha recuperado completamente da perda agindo daquela maneira que os deixava a todos um bocado embatucados.
Lá nos despedimos com ele tornando a agradecer a minha ajuda e foi cada um à sua.
Na semana seguinte, depois do traçado do costume, tornei a passar pela calçada das Trinas e lá estava ela de olhar perdido no horizonte e com a rosa no cabelo. Andei para a frente e então parei e olhei para trás para a rever, foi então que compreendi tudo. Ela estava ali à espera que ele torna-se a passar e lhe deita-se um piropo.