No último
JL (nº 949) uma página do volume II do diário de Luísa Dacosta (ainda inédito):
16 de Março de 2005Matosinhos
"Todos os dias, a todas as horas, em todo o mundo, chovem lágrimas de mulher. Lágrimas, em quartos fechados pelo desespero, sem janelas nem portas, sem saída. Lágrimas que as envelhecem de sulcos, de rugas, e lhes fazem ranger a alma. Lágrimas da que perdeu o filho na guerra, da que foi violada pelos usurpadores do seu país, da que viu o filho estalar de fome, comido de moscas, e da outra que o viu explodir ao tornar-se bomba, contra a injustiça e a opressão. Lágrimas de viúvas de vivos, que emigraram e as deixaram sós. Chovem, incessantemente, lágrimas de mulher. Da que foi usada, espancada e está sozinha. Da que não viu o seu corpo florir em filhos. Da outra cheia de frio e abandono, a dormir debaixo da ponte, agasalhada pelo álcool ou pela droga. Da que espera a morte, na solidão dos cuidados intensivos. Lágrimas da que só foi carregada de trabalhos, como besta de carga, sem afectos, sem cartas, sem palavras. A que foi abandonada, que não teve marido nem amante, só explorada e calcada aos pés.
O sol continua maligno, de quase verão, mas chovem, incessantes, lágrimas de mulher, que são, atrás da janela, a chuva que não cai, os soluços, secos, que ninguém ouve, pela filha que se suicidou ou teve que enterrar no dia de Natal, pelo cadáver, pulverizado num voo ou que o mar não devolveu à praia. Lágrimas inúteis, soluçadas e que, apesar de serem caudais infinitos, não são bênção de água, não florescem, não dão fruto, sombra, asas ou canto. Incessantemente, chovem lágrimas de mulher. E o sol, maligno, transforma-as em secos desertos de sal."
(ao mesmo tempo tão doloroso e tão belo)