Única, revista do jornal Expresso nº 1788 de 3 de Fevereiro de 2007:
… Mas. Aquele rapaz em Arzila, armado cavaleiro num chão de sangue e areia, que do pai perdulário recebe de herança apenas os caminhos de Portugal, que com a mesma mão mandou seguir para as Índias, África abaixo, e empurrou a lâmina que esventrou nobreza traidora (que em ti se cumpra o que contra mim conspiravas). Esse. Esse todo. Esse único. Deixem este cidadão votar, que por vezes lhe vem pena de ter nascido cinco séculos mais tarde. E do pouco que há-de dizer sua lápide singela, arranjem espaço para acrescentar, miudinha letra que seja, que ele que se despedia com o País o mundo perdidamente admirava Dom João Segundo.
(Rodrigo Guedes de Carvalho)
… Mas o que mais me aflige hoje em dia é a situação precária e humilhante em que vivem os imigrantes. Angustia-me a forma como são tratados os africanos e esta nova vaga de imigrantes de Leste, mesmo pelos portugueses que estão ao nível do que eles. Não levam nada desta vida além da falta de respeito.
Sinto-me constrangida a olhar para eles nas obras de construção civil que tenho de vigiar enquanto técnica, sempre que há movimentação de terras, e a pensar que tenho nas mãos o meu ideal de vida: andar com as botas na lama emocionarem constantemente com a descoberta.
(Joana Vivas, técnica de arqueologia)
…Não espero que Marcelo (Rebelo de Sousa) saiba o que é um aborto clandestino, ou o que sofrem as mulheres pobres que espetam agulhas ou praticam o aborto de vão de escada. Naquele mundo admirável e burguês onde vive uma existência doce o professor Marcelo, essas coisas simplesmente não são faladas, questão de educação. A hemorragia, o sangue, a pele furada, o útero escavacado, a torpe acção clandestina, trabalho de mulheres sobre mulheres ao qual o professor é estranho e continuará, por razão fisiológica civilizacional, estranho, são coisas feias de mais. Os pobres são outro país, os ignorantes também. Quando era um político no activo, o professor saía muito à rua a cativar o voto dos pobres. Na verdade, os pobres em tempo eleitoral são como as mulheres que abortam, uma abstracção, um, digamos, «estado de alma».
(Clara Ferreira Alves)