Sete e meia da manhã. O rádio-despertador liga-se e o som da Antena 1 acorda-me. Levanto-me e subo o estore. Pela pequena abertura da vidraça o gato entra a miar. Começa a dar-me marradinhas que é o sinal dele para “dá-me comida que estou cheio de fome, andei toda a noite às gatas e a dar coças noutros galarós da vizinhança e estou cansado”. Essa coisa de dar coças aos outros deve é ser mais o contrário pois noto falta de algum pelo nuns sítios. Dirijo-me à cozinha e ponho-lhe uns croquetes numa taça. Começa a comer, não sem antes me dar mais uma ou duas marradinhas. Pego na toalha e dirijo-me à casa de banho para as abluções matinais.
…
Sento-me da borda da cama enquanto vou misturando o muesli com o iogurte. De um lado da cama o Jornal de Letras aberto num artigo que estou a ler; do outro o gato, já saciado, deitado e enroscado. Dormitando com as duas orelhas levantadas. Acabo o pequeno-almoço e visto-me. Deito uma vista de olhos para o interior da carteira; tenho que passar pelo Multibanco. Saio e fecho a porta de casa de mansinho, o meu velho ainda dorme. Entro no carro e ligo o auto-rádio que, como de costume, está na Antena 2 que é o que ouço quando, ao fim da tarde, rumo para casa. Mas agora, oito e picos, cedo na manhã, apetece-me mais a Antena 1. Sintonizo-a. Notícias, previsão do estado do tempo e do trânsito. Estaciono e subo a colina. Compro o jornal Público no quiosque. Olho para o relógio, não há tempo, de momento, para um cafezinho. Fica para depois das cópias de segurança, às nove e pouco. Entro.
Bom. Vamos lá levar os bois para o campo.
Sonho que existes, mas será que existo eu?
Se existes no meu sonho é porque eu existo!
Porque se só existes no meu sonho eu tenho que existir
porque se eu não existir não existe sonho
e não existindo sonho tu não existes
e tu não existindo partia-se o meu coração
e eu sem coração não posso,
não sei viver, não existo.
As ruas da cidade estão sujas. Sujas de egoísmo, cada um sozinho nos seus pensamentos, não olhando o parceiro do lado, não vendo quem está caído. Ninguém liga a ninguém a não ser em interesse próprio. Os mendigos têm nos cães vagabundos os melhores amigos, no polícia que o manda afastar-se um verdugo, no transeunte que passa à volta um Pilatos e no estado do tempo a materialização do medo. As batinas dos padres varrem o chão sujo dos passeios mas ao fim do dia vão para a lavandaria, a sua alma não sei. A esmola de umas migalhas dadas aos pobres contrasta com a imensidão de edifícios erigidos para grandeza de Deus e para regalo de quem olha e paga o dízimo – senhores de fatos caros, engravatados, a ajudar “madames” a sair do carro à entrada de um restaurante de luxo.
Do outro lado da noite a Lua espelha-se nas poças de água e a esperança de encontrar a Audrey Hepburn, com uma guitarra nas mãos a cantar Moon River sentada numas escadas de incêndio, está cada vez mais longe. No entanto vi passar a correr um gato todo molhado e fiquei com a esperança que a Audrey viesse atrás. Claro que é uma patetice, nem sequer temos uma aloja da Tiffany's onde ela poderia acabar a noite comendo um rápido Breakfast para terminar a noite.
Momento parado. Rede interna parada, suspensa de uma determinada operação. Nem nada, coisa nenhuma ou qualquer outra coisa para fazer. Ociosidade? Não, apenas um momento de espera onde uma folha em branco espera que as roldanas do pensamento dêem ordem às mãos para escrever qualquer coisa. Um momento apenas que se eterniza no pensamento. Frases feitas a jogar pingue-pongue com palavras que aparecem detrás de não sei que árvore que plantei há muito na cachaporra. Já nem me lembro porque plantei a árvore mas eu gosto de árvores e rios, e rios. Um barco qualquer que me leve para longe desta pasmaceira, que desça o rio até ao mar e me transporte para África, ou para o Oriente, ou para o América do Sul. Um sítio qualquer onde o quadro de Munch, O Grito, não faça parte do nosso quotidiano.