Como escrevi a dois posts atrás andava às voltas com um texto. Ei-lo:
Como escrever este texto? É uma pergunta que há muito tempo me ponho. Portanto começo assim, com uma interrogação que traduz a pouca confiança que tenho na minha capacidade de escrever o que vejo e sinto. Ajuda.
Hiato.
Vi-a a atravessar a rua no seu passinho miúdo e rápido. Uma idosa pequena e nervosa a entrar numa pastelaria num Domingo de manhã. Não sei, posso dizê-lo com franqueza, o que me chamou a atenção nela e me fez desviar os olhos da montra da livraria. Algo foi. Voltei a interessar-me pela montra da livraria onde espreitei alguns títulos e fui dando uns passos na direcção do fim da rua.
Não sei o que me fez voltar a cabeça e olhar para trás e ver a idosa atravessar a rua e ser atropelada por automóvel de matrícula estrangeira. Corri, eu e outras pessoas. A idosa estava caída no chão, olhos abertos e nem um som. Foi então que percebi que era muda. Da boca não saía som algum mas os olhos diziam tudo. Transmitiam tal intensidade de dor que doía dentro de mim. Do carro saíram pessoas que pegaram nela e a transportaram, julgo que para o hospital. Mesmo bastantes anos depois a intensidade daquela mudez gritante nos olhos me assombra.
Agora vamos ao porquê do estar a contar isto.
O gato dos vizinhos costuma passar bastante tempo lá em casa; gosto porque para além de eu gostar de animais sei que assusta os ratos. Há uns tempos saltou para dentro de casa com um pássaro na boca que, reparei, era uma jovem rola. Estava viva mas já não se debatia. Ainda tentei tira-la mas o gato até rosnava e fugia. Reparei então nos olhos da rola, estava viva e respirava mas os olhos já não tinham vida; eram de uma aceitação total do destino, não havia dor nem desespero, apenas uns olhos abertos de uma jovem rola na boca de um gato. A comparação, com a imagem na minha memória, dos olhos da idosa a gritarem dor, estarreceu-me. E diz-me muito sobre a dimensão do ser humano.