Preciso de ti. Não me olhes assim. Bem sei que te digo isso sempre e que preciso de ti já há alguns anos, embora ainda hoje não te entenda bem e me veja sempre enamorado de ti. Preciso dizer-te, no entanto e mais uma vez, que já te ouvia a reverberar, sob a forma de uns estranhos ruídos, quando estava ainda dentro da barriga de onde saí. Preciso dizer-te que, miúdo, eu te percebia nas bocas a falar à minha volta, e tu sempre entravas pela minha cabeça de um jeito mas teimavas em sair pela minha boca de outro, muito deformado e balbuciante, e bastante diferente de como te ouço hoje quando abro a boca para te ouvia soar. Preciso dizer-te que foste afinal ganhando forma à medida que eu crescia e ganhava corpo, e te revelaste crucial para que eu não explodisse, com tantos sentimentos e angústias a precisar de uma forma, a forma que tu acabaste por lhes dar, e sempre à tua maneira. Preciso dizer que mais tarde, quando eu já te escrevia, acreditando, na minha inocência, que te possuía enfim e poderia fazer de ti o que bem quisesse, eu fiz de ti, sim, o que bem quis, mas no fundo o que fiz não foi nada mais do que fazer de ti fonte de expressão do que eu fui, era e teria sido, e tu és bem mais do que isso. Preciso dizer-te que, passados os anos, ainda hoje me sirvo de ti, quando me vejo às voltas com tudo aquilo que te escrevo apenas para saber, como alguém escreveu, o que escreveria caso escrevesse. Preciso dizer-te, por fim, que, um dia, quando já não mais me apareceres sob algumas das tuas formas; quando já não mais te puder captar como som que és, eu te terei por perto como tinta que também és; e, quando já não mais te puder vislumbrar como tinta que és, eu te terei como gesto que sempre poderás ser. E, mesmo quando já não mais te puder usar de nenhuma destas formas, quando então terei de me contentar e distrair com o que guardei de ti aqui dentro e ao longo do tempo, mesmo assim estarás aqui comigo e serás necessária para que eu me possa manter de pé e me enxergar a mim mesmo e dar sentido ao mundo. E, sempre que eu cair no erro de achar que fiz de ti o que queria fazer e que te escrevi como queria escrever, poderei enfim dizer-te que já não preciso de ti? Não poderei. Pois preciso. E precisarei de ti até ao preciso instante em que todas as palavras que tenho aqui dentro se acabarem, quando já não precisarei de ti – nem de nada.
Juva Battela, Jornal de Letras